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domingo, 19 de outubro de 2014

A LINGUAGEM DIVINA DO SILENCIO (Chuang Tzu)


“O propósito de uma armadilha para peixes é pegar peixes.
E quando são capturados, a armadilha é esquecida.
O propósito das palavras é transmitir ideias.
Quando as ideias são compreendidas, as palavras são esquecidas.
Onde posso encontrar um homem que se esqueceu das palavras?
É com ele que eu gostaria de conversar.”  (Chuang Tzu)


É difícil esquecer as palavras. Elas se agarram à mente. É difícil jogar fora a rede, porque não só os peixes são capturados, mas o pescador também.

Esse é um dos maiores problemas. Trabalhar com palavras é brincar com fogo, porque as palavras tornam-se tão importantes que o significado perde o significado.
O símbolo se torna tão pesado que o conteúdo é completamente perdido; a superfície hipnotiza e você esquece o centro.

Isso aconteceu em todo o mundo. Cristo - EU SOU - VOCE É - é o conteúdo , o cristianismo é apenas uma palavra; Buda - EU SOU - VOCE É  é o conteúdo, o dhammapada é apenas uma palavra; Krishna -  EU SOU - VOCE É  é o conteúdo, o Gita não é nada além de uma armadilha. Mas o Gita é lembrado e Krishna - EU SOU - VOCE É -  é esquecido.

Se você falar de Cristo, é por causa das igrejas, da teologia, da bíblia, das palavras.

As pessoas carregam a rede por muito tempo, sem perceber que aquilo é apenas uma rede, uma armadilha, como se a pessoa vivesse carregando uma escada.

Buda costumava contar:

Alguns homens estavam atravessando um rio. O rio era perigoso, ele estava na cheia – devia ser a estação das chuvas – e o barco salvou suas vidas. Então eles pensaram – eles deviam ser muito, muito inteligentes – eles pensaram:

“Este barco nos salvou, como podemos deixa-lo agora? Este é o nosso salvador e será ingratidão deixa-lo aqui!”. Então, eles levaram o barco na cabeça para a cidade.

Alguém lhes perguntou: “O que vocês estão fazendo? Nunca vimos ninguém carregando um barco.”

Eles disseram: “Agora vamos ter de levar este barco por toda a nossa vida, porque ele nos salvou, e não podemos ser ingratos.”

Essas pessoas de aparência inteligente deviam ser estúpidas.
Agradeça ao barco, mas deixe-o lá. Não o carregue. Você tem carregado vários tipos de barcos na cabeça. Olhe para dentro.

As escadas, os barcos, caminhos, palavras – este é o conteúdo da sua cabeça, da sua mente.

O recipiente se torna importante demais, o veículo se torna importante demais, o corpo se torna importante demais. O veículo era só para lhe transmitir a mensagem – receba a mensagem e esqueça o veículo.
Agradeça-lhe, mas não o leve em sua cabeça.

Maomé insistiu muito, quase todos os dias de sua vida: “Eu sou apenas um mensageiro. Não me adorem, eu apenas trago uma mensagem do divino. Não olhem para mim, olhem para o divino, que enviou a mensagem a vocês.” Mas os maometanos parecem ter esquecido a fonte. Maomé se tornou importante, o veículo.

Onde você empreende a sua busca – nas palavras, nas escrituras?
Se sua mente está muito sobrecarregada com palavras, teorias, escrituras, então o seu caminho para a existência está fechado, nada real pode lhe acontecer. Nada real poderá penetrar em você, nem o amor, nem a meditação, nem a existência. E tudo o que é belo aconteceu num processo de interiorização.

Quando você está em silêncio, sem qualquer apoio das palavras, quando você está esperando...

Nesse momento de espera suave - sem expectativas, a beleza acontece, o amor acontece, a devoção acontece, a divindade acontece. Mas, se um homem é muito viciado em palavras, ele vai perder tudo.
No final, ele terá uma longa coleção de palavras e teorias, lógica, tudo – mas nada vale a pena porque está faltando o conteúdo.

Você tem a rede, a armadilha, mas não há nenhum peixe lá. Se você tivesse realmente capturado o peixe, você teria jogado fora a rede imediatamente. Quem se importa com a rede? Se você já usou o barco, pode esquecê-lo. Quem pensa no barco? Você transcendeu, ele foi usado.

Assim, sempre que um homem realmente passa a saber, o conhecimento é esquecido. Isso é o que chamamos de sabedoria.
Um homem sábio é aquele que foi capaz de desaprender o conhecimento. 

Mas por que esse vício pelas palavras?
Porque o símbolo parece ser o real.
Você acha que a palavra é a realidade. E, se ela se repete muito, a repetição faz com que você se auto-hipnotize. Repita uma coisa, e aos poucos você vai esquecer que você não sabe. A repetição vai lhe dar a sensação de que você sabe.

Se você vai ao templo pela primeira vez, vai na ignorância. Você não sabe se esse templo realmente contém alguma coisa, se Deus está lá ou não. Mas vá todos os dias e viva repetindo o ritual, as orações; e faça tudo conforme lhe for dito, sempre, todas as vezes, dia após dia, ano após ano. Você vai se esquecer do estado de espírito que havia no começo. Com repetições contínuas a coisa vai para dentro da mente e você começa a sentir que esse é o templo, que Deus vive aqui, que essa é a morada de Deus. 

A repetição contínua de uma palavra cria a realidade, mas essa realidade é falsa. É ilusão, e você só pode voltar para a realidade se todas as palavras desaparecerem da sua mente. Mesmo uma única palavra pode criar a ilusão. As palavras são grandes forças. Se ainda houver uma única palavra na sua mente, ela não está vazia.
Tudo o que você está vendo, sentindo, é criado através da palavra, e essa palavra vai mudar a realidade.

Você tem que ficar completamente sem palavras, sem pensamentos. Você tem que ser apenas consciência. Quando você é apenas consciência, a realidade é revelada a você. Só então o real aparece, é revelado. Agora o sutra:

“O propósito de uma armadilha para peixes é pegar peixes.
E quando são capturados, a armadilha é esquecida."

Você se esqueceu completamente do propósito.

Você acumulou tantas armadilhas para peixes, vive tão preocupado com essas armadilhas que se esqueceu completamente do peixe.
Se você não consegue esquecer a armadilha, isso significa que o peixe ainda não foi capturado.
Lembre-se, se você está continuamente obcecado com a armadilha, isso mostra que os peixes ainda não foram pegos.

"O propósito das palavras é transmitir ideias.
Quando as ideias são compreendidas, as palavras são esquecidas."

Se você realmente me entender, não será capaz de se lembrar do que eu disse.
Você vai pegar o peixe, mas irá jogar fora a armadilha.

Você vai ser o que eu disse, mas não vai se lembrar das palavras que eu disse.

Você vai ser transformado por elas, mas não vai se tornar um homem mais instruído por causa delas.

Você estará mais vazio por causa delas, menos cheio; você vai se afastar de mim revigorado, não sobrecarregado.

Não tente acumular o que eu digo, porque tudo o que você acumular será errado.
O acúmulo está errado: não acumule, não preencha o seu baú com as minhas palavras. Jogue-as fora, então o significado vai estar lá, e o significado não precisa ser lembrado. Ele nunca se torna parte da memória, torna-se parte da sua totalidade.

Você só precisa se lembrar de uma coisa quando ela faz parte da memória, do intelecto. Isso que lhe digo não faz parte da memória, do intelecto.

Você nunca precisa se lembrar de uma coisa real, pois se a coisa acontece a você, ela está lá – qual a necessidade de lembrar? Não repita, porque a repetição vai lhe dar uma falsa noção.

Ouça, mas não as palavras – bem ao lado das palavras o que não tem palavras está sendo transmitido a você.

Não fique focado demais nas palavras, basta olhar um pouco de lado, porque a coisa real está sendo transmitida ali. Não ouça o que eu digo, ouça-me! Eu também estou aqui, não apenas as palavras. E se você me ouvir, então todas as palavras serão esquecidas.

Foi o que aconteceu... Buda morreu, e os discípulos ficaram muito perturbados, porque nenhuma de suas frases foram registradas enquanto ele estava vivo. Eles haviam se esquecido completamente.
Os discípulos iluminados de Buda foram abordados – Mahakashyapa, Sariputta, Moggalyan –, e todos esses que se tornaram iluminados encolheram os ombros: “É difícil, ele disse tantas coisas, mas não nos lembramos.” E esses foram os discípulos que tinham alcançado a iluminação!

Então Ananda foi abordado. Ele não se tornou iluminado enquanto Buda estava vivo, ele tornou-se iluminado depois que Buda morreu. Ele se lembrava de tudo. Ele acompanhou Buda por quarenta anos, e ele ditou tudo, palavra por palavra – um homem que não foi iluminado!

Parece paradoxal. Aqueles que tinham alcançado a iluminação deveriam se lembrar, não esse homem que ainda não havia atingido a outra margem. Mas quando a outra margem é atingida, esta margem é esquecida e, se a própria pessoa se tornou um buda, quem se importa em lembrar o que Buda disse?

“O propósito de uma armadilha para peixes é pegar peixes.
E quando são capturados, a armadilha é esquecida."

As palavras de Buda eram armadilhas, Mahakashyapa capturou o peixe.
Quem se preocupa com a armadilha agora? Quem se importa em saber para onde o barco foi?
Ele cruzou o rio. Claro que vai ser assim.

Se Mahakashyapa tornou-se ele próprio um buda, como eles podem estar separados? Os dois não são dois. Contudo Ananda disse: “Eu vou relatar suas palavras”, e ele relatou de modo muito autêntico. A humanidade tem uma grande dívida para com este Ananda, que ainda era ignorante. Ele não havia capturado o peixe, por isso ele se lembrava da armadilha. Ele ainda estava pensando em pegar o peixe, por isso tinha que carregar a armadilha.

Lembre-se disso como uma lei básica da vida: o que é superficial, periférico (e palavras são superficiais, periféricas) parece tão significativo porque você não está consciente do essencial, do centro. Esse mundo parece tão significativo porque você não está consciente de Deus.

Quando Deus é conhecido, o mundo é esquecido, nunca o contrário. 

As pessoas tentaram esquecer o mundo para que pudessem conhecer Deus – isso nunca aconteceu e nunca acontecerá.

Você pode continuar tentando esquecer o mundo, mas você não vai conseguir.

Todos os seus esforços para esquecer o mundo se tornarão uma lembrança contínua.

Somente quando Deus é conhecido o mundo é esquecido. Somente quando a outra margem é atingida, esta margem desaparece. 

Você pode continuar lutando para abandonar o pensar, mas você não pode abandonar o pensamento enquanto não alcançar a consciência.

O pensar é um substituto – como você pode abandonar a armadilha enquanto o peixe ainda não está capturado? A mente dirá: “Não seja tolo, onde está o peixe?”

Como você pode abandonar as palavras se ainda não percebeu o significado?

Não tente lutar com as palavras, tentar alcançar o significado. Não tente lutar com os pensamentos. É por isso que eu insisto mais uma vez em dizer que, se os pensamentos o perturbarem, não lute contra eles, não os combata. Se eles vierem, deixe-os vir. Se eles se forem, deixe-os ir. Não faça nada, apenas fique indiferente, seja apenas um observador, um espectador, não se preocupe. Isso é tudo o que você pode fazer agora – ser indiferente.

Não diga: “Não venham.” Não convide, não rejeite, não condene e não aprecie. Basta ficar indiferente. Olhe para eles, eles vêm como nuvens, e depois vão, como as nuvens desaparecem. Deixe-os ir e vir, não fique no caminho, não preste atenção neles. Porque, se você ficar contra eles, você começará a prestar atenção, e logo estará perturbado: “Minha meditação está perdida”. Nada está perdido. A meditação é a sua natureza intrínseca. Nada está perdido. O céu está perdido quando há nuvens? Nada está perdido.

Seja indiferente, não se sinta incomodado pelos pensamentos, desta ou daquela maneira.
E, mais cedo ou mais tarde, você vai sentir e perceber que esse ir e vir dos pensamentos se tornou mais lento. Cedo ou tarde você vai ver que agora eles vêm, mas não tanto; às vezes o trânsito para, a estrada fica vazia. Um pensamento passou, outro ainda não chegou; há um intervalo. Nesse intervalo você vai conhecer o seu céu interior em sua glória absoluta. Mas se entrar um pensamento, deixe-o entrar, não fique perturbado.

Se você conseguir, faça isso, pois somente isso pode ser feito; nada mais é possível. Seja desatento, indiferente, sem se importar. Apenas permaneça como uma testemunha, observando, não interferindo, e a mente irá passar, porque nada poderá ser retido no seu interior, se você ficar indiferente.

A indiferença é o corte das raízes, as próprias raízes. Não se sinta antagônico porque assim você também estará alimentando.

Se você tem que se lembrar dos amigos, você tem que se lembrar dos inimigos também, até mais. Os amigos você pode esquecer, como pode esquecer os inimigos? Você terá que lembrar constantemente deles, porque você tem medo. 

As pessoas ficam perturbadas com os pensamentos. Mas através da luta você presta atenção – e a atenção é o alimento. Tudo cresce se você prestar atenção; cresce rápido, torna-se mais vital. Seja apenas indiferente. 




 

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